Capa | Biografia | Livros | Espaço Acadêmico | Fotos | Textos | Links | Mural de Recados | Contato

Textos

Desejo

O barulho do chinelo fez Lia se encolher. Uma vez mais ouvia passos. Após, o som do relógio desviou sua atenção. Logo começaria a estranha e sufocante tosse e depois gemidos angustiantes, seguidos de um silêncio completo. Nenhum ruído habitual da rua. Levantou-se mais uma vez e foi até a janela para tentar vislumbrar movimento em alguma casa vizinha. Todas escuras, silenciosas. Não voltou para a cama. Sem conseguir entender, fazia as mais doidas conjecturas.
Pela manhã, nada falou ao marido. Ele diria que é muito filme de terror na televisão a assustar e que tratasse de ir para cama mais cedo.
Quando a velha faxineira chegou, não se conteve. Contou o ocorrido, tendo como resposta — a senhora também? Como assim, perguntou Lia? Ah! O seu Gustavo não vai gostar que eu lhe conte. A mãe dele se incomodava muito com isto. Ela falava a mesma coisa e todos pensaram que era caduquice. Coisa esquisita!
Lia passou bom tempo pensando como esclarecer aquela história. Gustavo nada lhe diria de confiável, mas Clarice, a irmã de Gustavo, sim. Arrumou a mala, deixou um bilhete para Gustavo e embarcou para Picada Café para tentar esclarecer o mistério.
Clarice ficou muito surpresa com a visita, mas tão logo Lia esclareceu o motivo da vinda, entendeu. Disse logo: Gustavo irá me matar se eu te contar, mas você não merece permanecer nesta dúvida. Dizem que nosso bisavô, muito velho, asmático e doente, adorava fumar. E nada o convencia a parar. Gustavo, menino, costumava comprar cigarros para o bisavô, escondido de todos. Um dia cometeu um descuido e foi pego por seu pai com os cigarros na mão. O pai explicou que o fumo estava matando o bisavô e que ele não mais iria fazer isto. Assustado, Gustavo prometeu.
O bisavô desesperado pedia, implorava ao bisneto que o auxiliasse, e Gustavo, por medo de perdê-lo, sempre permaneceu obediente ao pai.
Na última noite de vida do bisavô, após implorar a Gustavo para comprar cigarros e frente à negativa, irritado, disse a Gustavo: todos a quem você amar irão para sempre me escutar em busca de um cigarro. Dito isto, voltou para o quarto e aguardou anoitecer. No silêncio da casa vestiu-se, indo em busca do desejado. Quase cego e no escuro, despencou do alto da escada e por isso morreu.
Lia ainda quis saber em qual quarto o bisavô dormia. Agradeceu à Clarice e voltou imediatamente para casa para tomar suas providências, não sem antes prometer que nada revelaria a Gustavo.


Gustavo ficou surpreso com a brusca ida de Lia à casa de sua irmã. Imediatamente pensou no som dos passos noturnos. O que faria? Sua mãe vivera obcecada e assustada.
Após a morte da mãe, compreendeu que não poderia jamais demonstrar amor pela pessoa a quem realmente amasse. Lia certamente seria a próxima vítima, uma vez que não tinham filhos e que quase todos os demais familiares já haviam partido. Tratava Lia e Clarice com distanciamento embora as adorasse. Temia que ao demonstrar seus reais sentimentos elas sofressem. Lia estava mais exposta por viver naquela casa. Ele não aguentaria tudo outra vez.


Ao retornar, Lia pensou, pensou até encontrar uma possível solução, buscando o necessário para concretizá-la. Antes de deitar, foi ao antigo quarto do bisavô, colocou um cinzeiro em cima de uma mesa. Acendeu um cigarro e o deixou aceso dentro do cinzeiro, com o restante da carteira e caixa de fósforos ao lado.
Na manhã seguinte, Gustavo, ao se deparar com o cigarro todo queimado, um maço e caixa de fósforos na mesa, foi em busca de Lia, que recém acordara, e lhe disse: estamos tanto tempo casados e nunca a tinha visto fumar. Vai começar agora? Sorridente ela falou — é só uma pequena tragada para me auxiliar a dormir tranquila. Nossa, como dormi bem ! Finalizou dando um grande e amoroso beijo em Gustavo.

Jane Ulbrich
26/04/2016

 

 


 


Site elaborado pela wwsites - sites para escritores